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Paraíso ameaçado
Publicado em 15/06/2019
Um quinhão que resume o país
Como tantas outras espalhadas Brasil afora, Saibadela é uma pequena comunidade rural, afastada de grandes centros urbanos. Localizada no Vale do Ribeira, compartilha inúmeras características que tornam esta região notável, tanto em beleza, quanto em desafios.
Em muitos aspectos, ambas retratam a realidade de uma parcela significativa da população do país, compelida a subsistir com minguados recursos nesta terra tão farta, numa luta diária pela sobrevivência que só cede espaço à resignação.
Foi justamente este contraste, entre miséria e abundância, que nos aproximou deste recatado bairro do município de Sete Barras, pois nele se escancara de modo emblemático ao opor seus extremos.
Exuberância absoluta
Enclausurada pela união de dois vales profundos, que convergem junto à confluência dos rios que os esculpem, repousa a diminuta planície aluvial sobre a qual se esparrama o modesto povoado
Moldada pelas íngremes encostas verdejantes que dela ascendem rumo ao planalto, surge aos olhos como verdadeira obra prima da natureza, manifesta numa explosão de vida que colore tudo ao seu redor.
Além de imponentes, as montanhas que a emolduram são recobertas por um espesso manto de vegetação, que, ao adensar-se às margens dos rios que por ela serpenteiam, parece cicatrizar as fissuras talhadas na imponente muralha.

Com o auxílio de seus afluentes, os rios Saibadela e do Quilombo integram a bacia hidrográfica do Ribeira de Iguape e são os grandes responsáveis por moldar a paisagem, alternando trechos em que fluem com rapidez, repletos de corredeiras e cachoeiras que rasgam as escarpas, com outros de calmaria, salpicados de piscinas tranquilas e praias de areia branca que ornamentam seus meandros.
As bruscas variações de altitude registradas nesta enorme fenda encravada no sopé do Continuum Ecológico de Paranapiacaba, considerado o maior remanescente contínuo do que um dia foi a Mata Atlântica, ocasionam uma concentração extraordinária de diferentes plantas e animais, motivo pelo qual apresenta um dos maiores índices de biodiversidade por hectare no planeta.
Não por acaso, esta paisagem impressionante figura na seleta lista de patrimônios naturais tombados pela UNESCO, como parte da Reserva da Biosfera Mata Atlântica, um importante reconhecimento de sua relevância, resguardado pela Área de Proteção Ambiental da Serra do Mar.

Ocultos sob as copas dessa frondosa floresta, uma profusão de diferentes habitats garante abrigo para milhares de espécies da fauna e da flora, que interagem incessantemente entre si, adaptando-se continuamente às transformações desse dinâmico ambiente.
Muitas delas estão ameaçadas, sob risco de extinção, incluindo o muriqui, mas, infelizmente, pouco se sabe sobre o panorama geral da conservação neste território, pois os estudos realizados até agora são exíguos e insuficientes.
Pela mesma razão, pouco se sabe sobre os vestígios das ocupações humanas de outrora, adensando o ar de mistério que dá origem às inúmeras lendas que encantam a região.
Toda essa exuberância despertou nossa atenção, nos parecendo ser um local que precisa ser preservado por sua raridade. Contudo, não somos os únicos atraídos para este local tão especial e as riquezas de sua floresta costumam despertar um outro tipo de interesse.
Patrimônio em perigo
Ao fazer uma busca rápida pela internet, não é difícil encontrar registros de crimes ambientais no Vale do Ribeira, muitos deles cometidos nas proximidades de Saibadela, sobretudo no interior dos parques estaduais Intervales e Carlos Botelho, seus vizinhos.
Ganhando destaque no país por conta de diversas apreensões recentes, a captura de animais silvestres é uma das infrações que integra a triste lista. Embora apreensões sejam raras, o problema é notório no Vale, não faltando relatos de armadilhas encontradas pela vigilância dos parques.
Também em evidência, os garimpos clandestinos multiplicaram-se na área a partir das eleições presidenciais de 2018, acompanhando a tendência notada em outros territórios protegidos do país. Atualmente, ocorre com maior intensidade entre os bairros Saibadela e Guapiruvu.
Liderando a triste estatística, a extração de palmito da palmeira juçara é a atividade ilegal mais comum na região.
Por conta de seu alto valor comercial, a juçara vem sendo explorada de modo predatório desde a invasão europeia até os dias de hoje.
Considerada espécie chave para sustentação da vida na Mata Atlântica, figura na lista de espécies ameaçadas de extinção e só é encontrada em quantidades significativas no interior das unidades de conservação, que sofrem invasões constantes apesar dos esforços da fiscalização realizada pelos vigilantes dos parques e pela polícia ambiental na tentativa de coibi-las.

Embora sua extração venha diminuindo ao longo da década, não há motivos para comemorar, umas vez que a principal causa da redução é seu rareamento na floresta, com a fronteira de corte do palmito cada vez mais distante. Além do impacto na fauna e consequentemente no equilíbrio ecossistêmico, seu desaparecimento tem apresentado outro efeito colateral ainda mais nocivo.

Para suprir a demanda das redes clandestinas de envase e distribuição de palmito estabelecidas, grandes áreas de floresta estão sendo derrubadas para a produção de palmeira pupunha, introduzida como alternativa comercial.
Incentivada pelo poder público local, a produção de pupunha vem crescendo aceleradamente e já é a atividade agrícola dominante em Saibadela.
Acompanhando a supressão da mata, o uso de excessivo de fertilizantes e herbicidas contamina o lençol freático e demais corpos d’água, estendendo a degradação para muito além do entorno imediato dos palmitais, plantados muitas vezes em encostas íngremes e à beira de rios e córregos.
Segundo informações de agentes do 3º batalhão da Polícia Ambiental de São Paulo, que solicitaram anonimato, a grande maioria dos delitos é perpetrada por indivíduos da parcela mais vulnerável da população local, que encontram na ilegalidade uma alternativa de complemento de renda, sendo poucos os que a mantém como atividade principal.
Embora essa caracterização ajude a ilustrar o perfil dos infratores, não pode ser estendida para inocentá-los, como se a carência respaldasse suas ações, que continuam condenáveis. Tampouco exclui a operação de grupos organizados, que financiam, articulam e gerenciam as redes que movimentam os produtos ilícitos.
As motivações dos crimes também não devem ser ignoradas ao analisar a questão, pois além de difusas, podem ocorrer de forma esporádica ou recorrente. Um exemplo é a caça, que costuma ocorrer para consumo próprio, como complemento da alimentação, ou de modo sistemático, por meio de caçadas esportivas clandestinas, organizadas para grupos amadores e entusiastas.
Apesar de ambas serem ilegais em áreas de proteção ambiental, é necessário distingui-las afim de melhor combatê-las, fato que direciona a discussão para os aspectos sociais nela envolvidos.
Isolamento social
Mesmo estando no principal eixo de ligação das regiões sul e sudeste do Brasil, o Vale do Ribeira parece isolado do restante do país e Saibadela isolada do restante do Vale. Como consequência, é a zona administrativa que detém os piores índices de desenvolvimento humano do estado, enquanto que o bairro é uma de suas áreas mais vulneráveis.
Mesmo estando 230km de São Paulo, cidade que possui a maior população e mercado consumidor de todo o hemisfério sul, e 260km de Curitiba, capital do estado com o quinto maior produto interno bruto dentre as vinte sete unidades federativas, Saibadela segue sendo um território inexplorado, conservando um semblante que não foge muito ao período do desembarque português.
Tal situação é resultado de uma combinação de fatores, alguns naturais, outros circunstanciais. No primeiro grupo, o relevo montanhoso forma uma ferradura que abraça o Vale e o isola geograficamente de seu entorno, condição primordial para preservação de suas matas, hoje protegidas pelas unidades de conservação que formam o Continuum Ecológico de Paranapiacaba.

No segundo, uma complexa combinação de variáveis socioeconômicas torna a questão grande demais para este post, mas não impede de darmos algumas pistas que ajudam a compreender o quebra-cabeça, destacando alguns episódios históricos que agravaram o isolamento do Vale e da comunidade de Saibadela.
Percalços do imediatismo
Pode ser difícil de acreditar, mas em meados do século XIX, Iguape era uma das cidades mais importantes do Brasil, rivalizando com o do Rio de Janeiro pelo título de principal porto do império. A riqueza desse período áureo ficou registrada no casario de seu centro histórico, cujo estado de conservação atual reflete a decadência da região.
Embora Cananéia, primeiro povoado português no continente, tenha sido fundada em 1531 e Iguape em 1538, o primeiro ciclo de desenvolvimento econômico da região só teve início um século mais tarde, com a descoberta de ouro, cuja exploração fez surgir os arraiais que deram origem às atuais cidades de Eldorado, Apiaí e Iporanga.
As lavras, que permaneceram produtivas até o início do século XIX, atraíram um grande fluxo de pessoas e criaram fortunas de uma hora para outra. Com o crescimento demográfico e o vultuoso volume de metal movimentando o comércio, a economia local cresceu e diversificou-se, diminuindo os impactos negativos causados pelo inevitável esgotamento das jazidas e pela notícia da descoberta das Minas Gerais.
Com o deslocamento da atividade mineradora para a região de Ouro Preto e Diamantina, a agricultura tornou-se a principal atividade econômica, com destaque para a produção de arroz, cujo clima e relevo mostravam-se extremamente propícios.
Foi através do cultivo do arroz que a região viveu o seu apogeu, chegando a possuir mais de 100 engenhos de beneficiamento do grão. Contudo, ao final do século XIX, um conjunto de fatores levou o sistema produtivo ao colapso.
O primeiro deles refere-se ao crescimento da produção de café no Vale do Paraíba, cuja exportação resultou em movimentos cambiais que favoreceram a importação de mercadorias, dentre elas o arroz. O baixo valor do produto estrangeiro pressionava, derrubando o valor de mercado do produto local.
Somado a este efeito colateral da expansão cafeeira, a mão-de-obra dos arrozais sofreu forte impacto com a abolição da escravidão. A substituição dos escravizados por assalariados não foi um processo trivial e houve certa descontinuidade na lavoura.
Por último, a abertura de um canal de ligação entre os portos fluvial e marítimo de Iguape, que visava encurtar o trajeto final do escoamento da produção para o porto, causou um dos maiores desastres registrados no período. Inicialmente projetado para ser uma via estreita para circulação das canoas que transportavam o arroz ao longo do Vale, o “valo” rapidamente alargou-se com o poder das águas do Ribeira, assoreando o porto e o lagamar estuarino.

A partir dos anos 1880, o declínio da região acelerou-se rapidamente, persistindo até os dias de hoje. Nem mesmo a construção da rodovia Régis Bittencourt na década de 1960, que cruza o Vale de ponta a ponta, foi capaz de reanimar sua economia.
Limites da fronteira
Enquanto o Vale do Ribeira enfrenta a decadência após um grande apogeu, Saibadela padece por estar, literalmente, às margens da civilização, situando-se nos limites da fronteira entre a ocupação humana e a floresta. Sua população sofre os males causados pela falta de renda e de infraestrutura, sobrevivendo dos recursos encontrados em seu entorno, sem orientação ou planejamento de qualquer espécie.
Parte das famílias estabelecidas é recém chegada, estando há menos de 10 anos no bairro. Outros viveram a vida inteira aqui e são fonte de valioso conhecimento, transmitido oralmente para os interessados. Em comum, todos compartilham a pobreza e a falta de acesso aos serviços sociais mais básicos.
A irregularidade fundiária também é uma questão que aflige todas as famílias. Apesar de haver propriedades cadastradas no INCRA e no ITESP, principais órgãos federal e estadual de apoio aos pequenos proprietários rurais, são poucas as que possuem algum tipo de documentação comprobatória da posse e não há registros de matrículas que garantam propriedade de imóveis no bairro.
As viagens até o centro são limitadas, havendo apenas uma linha de ônibus que funciona de segunda a sábado. As crianças são levadas para as aulas por uma van, que percorre as esburacadas ruas do bairro até a escola, localizada num bairro mais próximo da cidade.
Alagamentos recorrentes na sinuosa estrada de terra que liga o bairro à rodovia margeando o rio, isolam seus moradores com frequência, sobretudo no verão, deixando-os incomunicáveis e à mercê do clima.
O saneamento é deficiente e apenas percebido por conta da coleta de lixo semanal, frequência considerada insuficiente por gerar acúmulos que atraem animais silvestres, ampliando o risco de zoonoses. Por conta disso, muitos preferem queimar os resíduos, cujos restos se amontoam próximos às casas.
Não há tratamento de água, que é coletada nos córregos que correm das montanhas, sendo utilizada sem passar por qualquer tipo de descontaminação ou mesmo filtragem. Também não há coleta de esgoto, que é despejado sem tratamento em fossas negras ou direto nos rios, contaminando o lençol freático e demais corpos d’água.
Não há centralidade comercial no bairro, embora seja notado um adensamento de habitações no entorno da sede da associação comunitária local, que ocupa uma edificação no terreno da prefeitura onde anteriormente funcionava a escola, desativada há mais de quinze anos, e o posto de saúde, abandonado há pelo menos uma década.

A Associação Comunitária de Saibadela é o espaço designado para discussão dos problemas comuns. Em sua sede, parte das antigas salas de aula foram adaptadas numa pequena estação de beneficiamento de banana, que encontra-se inoperante devido à falta de alvará de funcionamento. Sem nunca terem sido utilizados, os equipamentos estão se deteriorando rapidamente, por conta de infiltrações que também ameaçam a laje e as instalações elétricas.
Mesmo tendo sido fundada há mais de vinte anos, a associação comunitária conta com participação de poucos moradores e atualmente sofre com a baixa adesão em suas reuniões, nas quais as demandas são reunidas e encaminhadas à prefeitura.
No momento, por dependerem do deslocamento até a cidade para terem acesso aos serviços mais básicos e abastecerem-se de mantimentos e produtos de primeira necessidade, a principal exigência é a melhoria dos 16km da estrada de terra que liga o bairro à Rodovia Nequinho Fogaça (SP-139) que dá acesso ao centro do município, distante mais 15km a partir deste ponto.
Palmito, banana e boteco
A principal atividade econômica de Saibadela é a lavoura de pupunha, seguida da banana, cujo beneficiamento em chips acontece, mas em escala irrelevante. Roças de subsistência e tanques de piscicultura são encontrados esporadicamente e são responsáveis por parte significativa da alimentação de seus habitantes, mas não contribuem com a economia.
A região é extremamente rica em água, com inúmeras nascentes e veredas nas encostas e alto índice pluviométrico. Contudo, enchentes são comuns no verão e prejudicam significativamente a produtividade das plantações, sendo que as mais volumosas proporcionam perdas da produção, insumos e equipamentos.


Além da agricultura, apenas alguns bares e uma manufatura de beneficiamento de palmito pupunha, que emprega pouco mais de uma dezena de pessoas, completam o panorama econômico local. Todos os demais serviços e produtos são adquiridos fora do bairro, em Sete Barras ou Registro. Nem mesmo igrejas, tão comuns em localidades similares, estão disponíveis para a população local.
Somados, os estabelecimentos comerciais existentes não totalizam dez. Embora limitados em número e capacidade de atendimento, possuem papel importante no cotidiano, servindo como ponto de encontro e troca de informações dos moradores, dado que o bairro não é servido de redes de telecomunicações.
Potencial desperdiçado
Uma questão que chama a atenção ao conhecer-se Saibadela um pouco mais a fundo, é o fato de que, mesmo estando localizado na divisa de dois parques estaduais e com tantas belezas naturais de fácil acesso, o bairro não figura como destino turístico de destaque.
A vocação turística esbarra na falta de organização e infraestrutura, permanecendo restrita a poucos aventureiros, que recebem orientação informal de alguns monitores locais credenciados, responsáveis pela união de esforços para manutenção e conservação das trilhas.

Os nomes que designam os rios também nomeiam duas bases de fiscalização do Parque Estadual Intervales, que, juntamente ao seu vizinho Parque Estadual Carlos Botelho, são em grande medida responsáveis pela conservação florestal.
O acesso às bases se dá pelas ruas do bairro. Delas partem algumas trilhas mata adentro, percorrendo áreas de vegetação densa e conectando os atrativos que fascinam visitantes na alta temporada, com destaque para as cachoeiras do Quilombo, do Mono e do Saibadela. Também há uma série de mirantes identificados, mas a verdade é que muitos atrativos permanecem escondidos, esperando para serem descobertos.
Este esporádico turismo que beneficia diretamente alguns moradores, indiretamente também beneficia a floresta, uma vez que a presença de turistas na mata expõe as práticas clandestinas de caça e captura de animais silvestres, extração de madeira e, principalmente, do palmito da Juçara.
Terra sem males
Um último aspecto que chamou nossa atenção em Saibadela foi a presença da aldeia Peguao’ty, de etnia Guarani M’Byá, estabelecida no interior do Intervales, que após uma década se defendendo em uma batalha judicial iniciada pelo governo do estado, teve sua permanência garantida pela justiça, sendo posteriormente reconhecida pela FUNAI.
A ação encampada pelo governo exigindo a reintegração de posse e despejo das famílias da aldeia, teve início logo após a ocupação da área, em 2001. Vindos da aldeia Sapucaí, localizada em Angra dos Reis, seus integrantes migraram em busca de terras mais férteis e propícias para plantações das culturas tradicionais, como o milho e a mandioca.

Apesar de ser uma ocupação recente, esta não é a primeira, pois há registros arqueológicos que comprovam a presença de ocupações anteriores.
Na cosmogonia Guarani, a busca pela yvy marãey, ou terra sem males, é um dos principais motivadores dos constantes deslocamentos populacionais, que ocorrem desde tempos imemoriais até hoje. O território ocupado antes da invasão portuguesa também continua similar, mantido pelos descendentes que procuram sinais das ocupações ancestrais.
Portanto, não é por acaso que a aldeia foi implantada em Saibadela, pois há poucos locais que ainda apresentam florestas primitivas nos remanescentes da Mata Atlântica.
Também não é por acaso nosso interesse por esta comunidade.
Saibadela nos atraiu ao apresentar relações entre aspectos ambientais, culturais, econômicos e sociais de forma tão singular, mas foi a receptividade de seus moradores que nos cativou. Estamos ansiosos para os desdobramentos de nossos primeiros contatos com este lugar especial, que evidentemente não está livre de males, mas possui um potencial de desenvolvimento gigantesco.